Mau exemplo
And nothing you could do to stop me feeling the way i do
And if the chance should happen that i never see you again
Just remember that i'll always love you
I'd be a better person on the other side i'm sure
You'd find a way to help yourself
And find another door
To shrug off minor incidents
And Make us both feel proud
I'd just wish i could be there to see you through
You always were the one to make us stand out in a crowd
Though every once upon a while your head was in a cloud
There's nothing you could never do to ever let me down
And remember that ill always love you
Estava sentada em frente ao teclado preto, de luto e hirta, ainda dormente. Escreveu tudo o que queria contar e de repente, como por magia, no écran as letras, as centenas de caracteres, desapareceram. Tinha acabado de perder os leitores e decidira que não tinha nada que não pudesse ser dito. Aparentemente, existem coisas que não podem ser ditas. Coisas simples, como o facto de ela só sentir falta de reconhecimento. Ser invisível não é fácil. É mais fácil viver no limbo.
As palavras não queriam que estivesse escrita a verdade: que ela era demasiado exigente, insistente, insegura. Neurótica e com uns laivos de loucura a raiar o exagero. As cenas que fazia, as palavras azedas, os pedidos de carinho. Tudo isso era demasiado continuo para ser suportado por qualquer pessoa. As palavras conheciam-na bem e tentaram defendê-la.
Mas ela não precisa de defesa. Vai colocar a capa de super mulher, e fazer-se transportar numa nuvem que a fará deslizar como se não estivesse ninguém lá dentro. Terá um invólucro a protegê-la até se sentir segura para sair. Não fará mais pedidos. Esse é um direito que ela sabia que não lhe assistia, e só tinha que aceitar as condições.
Planeou destruir os hipocampos. Os dois. Primeiro o esquerdo, devagar, muito devagar, para se ir esquecendo de sons, sítios, cheiros. Depois o direito. Para se esquecer do toque, do prazer, da pele, das conversas, da respiração. Da sensação que era estarem juntos.
Vai fazê-lo pacificamente, serenamente, como se não fosse ela a perder a memória de tantas emoções, tantas noites, tantas coisas que as letras não permitem escrever. Recusam-se a juntar-se, estas letras. Não querem partilhar com ninguém o que ela lhes contou. Querem ter esse privilégio: serem as únicas a saber das estradas, das áreas de serviço, das ruas, das gotas de suor, das noites passadas a ouvir histórias, a sorrir por dentro, a tremer e a estremecer de prazer. Só elas querem lembrar-se das paralisias faciais, das costas, das vigílias do sono.
Quando os dois hipocampos estiverem mortos, sem sangue, nem células, nem vida possível, são as palavras as únicas a lembrar-se.
Não querem contar dos massacres que ela realizava, bombardeamentos de mensagens, chamadas telefónicas, tentativas de encontros, pedidos histéricos de mais um bocadinho... Só mais um bocadinho de pele, de olhos, de sono. Só mais um beijo. (podia sempre ser o último e ela nunca saberia. ela não podia escolher e aceitava com muito prazer o tempo que ele lhe podia disponibilizar. mesmo antes de saber que ele estava demasiado entranhado na pele dela)
Ela viveu intensamente o tempo que vai esquecer, porque a qualquer instante esperava que fosse o último minuto. Aproveitava todos os segundos, os milésimos de segundo, mesmo quando só o achava simpático e bom amante. Muito bom amante.
Quando ainda não tinha coragem para lhe dizer que era lindo! Quando gostava dele de outra maneira. Quando não lhe fazia exigências. Nem incomodava com mensagens a pedir para ir ter com ela. (três num ano...)
Vivia cada milésimo de segundo e recorda-se de todos.
As palavras estão a tentar não sair das teclas mais uma vez. Não percebem que se podem juntar como ela quiser, que não têm que pensar em defender ou proteger nenhum leitor. Que nada vai prejudicar quem leia estas letras, porque já não existem leitores.
Agora são as palavras e ela.
Agora não interessam os secretismos, as invenções de hotéis, jardins, ou estradas. Podem fantasiar aventuras nocturnas e planos que nunca se concretizaram. Aquelas coisas simples que de vez em quando se sugeriam e que eram sempre impossíveis de realizar. Nada que a aproximasse demasiado da sua vida pessoal, para ela não ter expectativas, nem demasiadas ligações. Apesar de ser só um affair liberal , mentia-lhe várias vezes e acusava-a de leviandade e promiscuidade. O que era muito pouco, se ele tivesse a coragem de lhe dizer mesmo o que achava dela... Porque podem-se levar mulheres para casa sem ninguém saber, não prejudica a reputação e o bom nome, mas não se pode sair com amigos diferentes e acabar as noites todas sozinha, porque isso faria dela uma pessoa inadequada para estar perto dele.
Sexo é sexo. Não existem compromissos. Estava bem definido. Mas ela era uma leviana... Andava acompanhada na rua por amigos do sexo oposto... Era inadmissível! Só os podia levar para casa, mas muito discretamente. Isso era permitido. Agora ir sozinha? Ela ficava confusa. Talvez por ele achar que ela era acéfala. Várias vezes ela sentia o cérebro escorrer pelo couro cabeludo, numa massa liquefeita com uma cor esverdeada, mas sempre pensou que iam ficando lá uns restos. Ele diz que não.
Agora tem menos um órgão vital.
Não sente o coração.
De battre, son coeur s'est arrêté.
Não vai saber para quem é o presente que tem dentro do armário, e que estava guardado para um desses dias em que eles ficavam sozinhos e eram tão especiais. (agora já tem dúvidas também. Seria só a imaginação dela? mas acéfala? será que os acéfalos tem a capacidade de usar a imaginação?)
( será que sentem? que têm direito a ser alguma coisa? decidir? escolher?)
Vai escrever num post-it gigante os sítios onde não pode voltar a ir e colá-lo no espelho para não ter que ver os olhos baços enquanto se penteia... Vai evitar ruas e rios e vistas para o castelo ou para a cidade. Vai frequentar sítios indecorosos onde não o possa encontrar só para não o constranger.
De uma coisa tem a certeza: não vai encontrar nada que possa superar tudo o que fizeram juntos, mesmo quando ele nunca tinha tempo, e estava com as outras mulheres, ou com os amigos, ou a fugir dela. Sempre a fugir.
Todas as palavras juntas e devidamente ensaiadas e treinadas não conseguiriam transmitir todas as emoções: a música, o Carnaval, as conversas, as histórias, as loucuras, as aventuras, o toque, o cheiro, o que ela sentia, ou queria sentir.
Ela não conseguiu substituí-lo antes, e agora também não vai ser possível encontrar melhor.
Mesmo que exista alguém que a elogie (ele nunca o fazia), ou que a incentive (ele era muito pouco dado a incentivos), ou que lhe acaricie os cabelos.
Ela dava, ele aceitava. Ela dava, ele aceitava.
Ela gostava. Ele... Ela não sabe.
Agora que pensa nisso, sabe que não era importante. Ela sentia-se feliz, mas ele, ele
tinha mulheres mais bonitas e talvez também algumas menos bonitas do que ela sempre que não estavam juntos que o podiam fazer sentir quase tão bem quanto ela. Mas ela sabia que o tratava mal. Sempre o tratou mal.
Agora que reflecte, tem dúvidas. Tem muitas dúvidas. Os homens fingem mais que as mulheres.
Destruir os hipocampos! Urgente. É urgente começar.
O processo tem que ser rápido. Mais rápido do que o previsto. Quer esquecer que ele lhe faz chegar palavras mais ofensivas que o facto de ela ter medo que ele tirasse a carteira do bolso e lhe metesse na mão uma ou duas notas, antes de sair do quarto...
Esquecer que tremia só de imaginar que isso poderia vir a acontecer.
Continua serena e pouco mudou. Tem vontade de descrever todas as coisas boas que ele sem saber lhe deu. Não existe raiva nem nenhum sentimento violento. Vai existir saudade. Talvez sinta um vazio algures no sítio que tinha reservado para o sorriso que lhe dedicava quando pensava nele.
Pode confirmar a suspeita que existia em relação ao fim. Não se despediram. Ele é moderno e decidiu tudo no talk do google. Assim não precisa de ganhar coragem para lhe falar olhos nos olhos. Não se esforça, nem tem que a ouvir nem que seja por educação. Tem que sair com urgência. As ligações são péssimas e estão sempre a cair. Pode-se escolher o método mais apropriado. Não se liga a internet e está tudo muito bem.
Adeus, tenho que desligar. Adeus, adeus. (não tenho coragem para falar, queria ele dizer)
Interessa é não ter que a encontrar para dar justificações. Ela sabe que ele lhe diria que não a quer magoar. (como se ele fizesse ideia do que é sofrer...) Coitadinha e isso...Deve ter razão, pensa ela. Não poderá ser alguém acéfalo a saber o que será melhor.
Ela sempre o achou muito inteligente. Era também por isso que gostava dele. Porque mesmo leviana, ela era muito selectiva. Além disso, ele era especial. Era diferente dos homens que a rodeavam. Era especial. Era único e especial.
Continua a mesma. Só com menos leitores e com mais uma cicatriz que não se lembra de como foi feita.
Continua sentada em frente ao teclado preto e sabe que não vai voltar a ouvir nenhuma história, nem música, nem a sentir o cheiro nem a pele.
Senta-se direita e respira. Admite que o torturava demasiado e até lhe pediu uma vez para o ver a fazer o que ele faz para viver. Sim. Abusou e não podia ter feito isso. Era o acordo. Não se intrometer, fingir-se de morta.
Continua a mesma. sentada na cadeira preta, em frente ao teclado preto.
Luto. Depois de dois ou três dos melhores dias que ela teve neste tempo todo com ele. Mesmo sem presença física.
Mas é um mau exemplo, ela.
E tem uma cicatriz disforme que não se recorda de como a fez.
Ela é um mau exemplo.
Ele era único e especial. Ela era só um mau exemplo. Uma coisa acéfala e sem pudor. Um mau exemplo.