sábado, novembro 19, 2005

Covil



Metia-me na banheira, nesse verão. Era tão pequena que tinha de curvar as costas e dobrar os joelhos.
Como um feto.
No meu covil liquído, escondia-me.
sentia-me bem, lá. De certa forma abrigada. No seu cheiro. Habitei essa banheira muitas noites, esses meus fragmentos de noite, quando o pessoal do hospital descansava gentilmente do serviço pelas três da manhã. Quando já conseguia mexer-me, andar sem tropeçar e sem rebentar os catéteres que tinha espetados no braço, como aconteceu no primeiro dia em que voltei a sentir o corpo. Nesse dia de milagres em que me fechei na casa de banho e quase me esvaía em sangue sem me poder mexer como antes.
Escondia-me do que me fizeram. Afogava a vergonha e depositava as lágrimas naquela água que me ajudava a libertar.
Temos sempre esperança. Mas esse estado de certeza não é confiante nem calmo. Depressa caía num universo de crença, de magia, até de bruxaria. O que acontece faz parte do impensável a tal ponto que, no universo simbólico, o excepcional passa a ser a regra.
Só queria sair dali. Sair para a rua e andar outra vez.
Quando se desce tanto nas entranhas da terra, a obscuridade não é uniforme. Ganha-se o hábito do escuro. Ouve-se novamente a risota que assombrava os pesadelos de infância.

Sonhamos de olhos abertos. Vemos diabos vermelhos que não param de dançar, macacos com grandes pénis que se masturbam nos troncos das árvores.
Deixei de dormir, mas não estava cansada. Só queria andar outra vez. Deixar a morgue para onde me empurraram tão selváticamente...
> Blogger Mary Mary said...

SAFA!!! Fiquei com um arrepio gigantesco na espinha... Não sei porquê mas este achei um pouco perturbador...

segunda-feira, novembro 21, 2005 4:49:00 da manhã  
> Blogger Dia said...

Muito bom o post. E a minha pele também ficou como a das galinhas.

segunda-feira, novembro 21, 2005 7:06:00 da tarde  
> Anonymous Anónimo said...

Bem... Sem palavras! Ainda há quem nos consiga mesmo magoar...

terça-feira, novembro 22, 2005 1:18:00 da manhã  
> Blogger Lcego said...

No dia em que os monstros vieram jantar com as mulheres da minha casa, eu tinha sete anos. O meu foi possuído mesmo à nossa frente. A ira voltou-se inexplicavelmente contra a minha mãe. Nesse dia tive a força que minha mãe não teve, a minha irmã também, e espancamos o meu pai que ficou quieto e os montros perplexos. Ainda hoje quando pego num tenás, lembro-me que é um bom exorcista. A minha mãe percebeu que tudo já não a afectava, mas afectava as filhas.Saímos de casa. O meu pai percebeu que tinha destruído mais de que um laço, rompeu três.
Perdoamo-nos passado meio ano. O meu pai nunca mais foi possuído.A minha mãe passou a ser o chefe da família e domina o medo. A minha irmã ainda hoje faz terapia em psicólogos que descarta regularmente. Eu não sei bem. Penso que superei. Perdoei. Mas sei ler nos olhos de um homem se ele pode ser ou não possuído. Filtro tudo, analiso antes de provar, e só se aprovar é que provo. Fiquei com o gosto apurado e selectivo.

quarta-feira, novembro 23, 2005 4:08:00 da tarde  
> Blogger Ossos said...

Vou destruindo estes monstros aos poucos. E não tarda nada tudo será só isto mesmo. Uma memória descrita num blog...

sexta-feira, novembro 25, 2005 2:25:00 da tarde  

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